No fundo da alma

março 20, 2008

Lá estava ele; na Guiana. Numa cidadezinha no litoral deste pequeno país. Perto de umas rochas, à beira de um rio que desemboca no Atlântico alguns metros acima; ele era iluminado pela luz da lua cheia, e nela pareciam vir os odores da América Latina. Olhava para a esquerda, para o norte, e via Trinidade e Tobago, ou então, poderia sentir a brisa quente que vinha de Dominica, Barbados, Santa Lucia, de todas aquelas pequenas ilhas arrancadas de sua gente pelos europeus centenas de anos atrás; lá, agora, eles dançam músicas ritmadas pelos tambores; suas gentes cantam as músicas que lembram seus lugares de origem; e hoje em dia, estes lugares são os mais diversos. Até mesmo ali, onde estava, na Guiana, isto era uma realidade; está na alma da América Latina; o “Terceiro Mundo”, onde o futebol impera, onde a hospitalidade é uma das suas maiores virtudes, onde as pessoas ficam na rua, na frente de suas casas, conversando até tarde, pois o calor é muito forte e úmido. Esta umidade vem carregada nos ventos que sopram do mar no seu rosto. Ele quer entrar nesta alma latina; está caminhando desde a Argentina, saído do Brasil para entender esta gente que (sobre)vive sempre feliz a cantar suas músicas, sua cultura, apesar de todas as dificuldades. Ele está esperando um barco que o levará a outra cidade, mas não se importa de estar sozinho naquele lugar, nem de ter somente o céu, as estrelas e a lua como companheira, pois sabe que sob aquele céu há fogueiras e eles dançam em volta dela, naquele momento; seja fazendo amor, seja comemorando um aniversário, ou seja simplesmente comemorando a condição de estarem vivos e poderem festejar isto. Agora mesmo, ele conseguiu enxergar até os limites da ilha de Cuba, e sentiu que uma mulher, uma lindíssima negra também conseguiu enxergá-lo; ela o convidou para pôr sua cabeça entre seus grandes seios quase desnudos, e ali descansar; ela o abrigaria com seu corpo, antes de seus lábios o lavarem.

Olhando um pouco mais para o norte, viu jovens jamaicanos entoando Bob Marley, que ele conseguiu enxergar na fumaça que subia daquela fogueira, misturada à fumaça da maconha que eles fumavam; Marley sorria, no meio da fumaça, também o chamando para compartilhar com eles daquele momento de liberdade da alma e da mente. Sentia que estava chegando à alma da Latino américa antes mesmo de entrar nela. Seria uma viagem que nunca mais esqueceria, não tinha dúvida.

Atravessando o Orinoco com seus olhos, viu dois homens e duas mulheres fazendo amor à beira de um lago, banhados pela mesma lua, sentindo o mesmo vento que soprava do mar; eles também o esperavam, mas disseram que só deveria ir até “a” “fronteira”; de lá, não deveria passar; chegar perto já faria mal a sua expedição à alma latino-americana. Entendeu perfeitamente, e esta era exatamente sua intenção, apesar de que o povo estadunidense já tinha, em si, incrustado um pedaço desta alma que ele adentrava. Apesar de tentarem macular ela de todos os jeitos, eles não lutam com as mesmas armas que nós. Não, eles não usam as armas e espadas de Jorge, e sim as armas fabricadas pela mão humana, e esta, não tem efeito sobre a nossa alma, a não ser, fazê-la mais e mais forte; mais e mais unida.

Neste momento, o barco chega. Ao final da travessia do pequeno rio, ele encontra a mulher que vira em Cuba lhe chamando; ela olha para ele com um sorriso que o revigora ainda mais para continuar sua viagem; então ele sabe que tudo o que tem que fazer é seguir em frente, e deixar ser levado cada vez mais ao coração da América Latina, já que a alma, esta já faz parte dele.

Publicado no CLAP #0, em dezembro de 2007

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